Transição alimentar na Amazônia brasileira: pesquisa investiga fatores responsáveis pela mudança nos hábitos alimentares em comunidades ribeirinhas
Publicado em: 29 de junho de 2025
Estudo busca entender como fatores como a proximidade aos centros urbanos, o ambiente, a renda e a sazonalidade estão transformando hábitos alimentares nas Reservas Mamirauá e Amanã, Amazônia
Refeição reflete a diversidade e mudanças na alimentação de comunidades ribeirinhas na Amazônia. Crédito: Daiane da Rosa
Em um cenário de
profunda diversidade socioambiental, um estudo inédito nas Reservas de
Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Amanã, estado do Amazonas, tem se
debruçado sobre uma questão vital: quais são as causas das mudanças na
alimentação em comunidades ribeirinhas da região? Conduzida por uma equipe
multidisciplinar ligada à Universidade de Lisboa, à Universidade Federal do
Amazonas e ao Instituto Mamirauá, o estudo busca entender os fatores que
impulsionam a chamada transição alimentar nesses territórios tradicionais.
A pesquisa,
intitulada “Diversidade biocultural alimentar e resiliência: o caso da Amazônia
brasileira em transição”, é liderada pela pesquisadora Daiane Soares Xavier da
Rosa, doutoranda em Ciências da Sustentabilidade pela Universidade de Lisboa e
associada ao Instituto Mamirauá.
Com orientação e apoio de pesquisadores do Brasil e Portugal, o estudo une métodos quali-quantitativos para captar, com profundidade, os hábitos e mudanças no consumo de alimentos em seis comunidades ribeirinhas da região do Médio Solimões e como essas transformações impactam a cultura alimentar, a saúde e a resiliência socioecológica dessas comunidades amazônicas.
Alimentação na Amazônia em mudança
Comunidade Ubim, na Reserva Amanã (AM), uma das localidades ribeirinhas participantes da pesquisa. Crédito: Daiane da Rosa
Abrigo de mais de
3 milhões de hectares de floresta tropical, as Reservas de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá e Amanã estão entre as mais importantes áreas protegidas
da Amazônia brasileira. Reconhecidas por sua vasta biodiversidade e por serem o
território de comunidades tradicionais, essas reservas desempenham papel
estratégico na conservação ambiental e no desenvolvimento sustentável da região,
frente os efeitos acelerados das mudanças climáticas e o avanço de atividades
predatórias de larga escala, como a mineração.
É nesse panorama
complexo que a pesquisa busca compreender como essas comunidades têm vivenciado
transformações em seus hábitos alimentares.
De acordo com Daiane da Rosa, as comunidades selecionadas para o estudo — três na Reserva Mamirauá e três na Reserva Amanã — apresentam diferentes graus de proximidade com centros urbanos, o que pode influenciar o acesso a alimentos industrializados. Esse é um dos fatores que vem sendo analisado como determinante na transformação dos hábitos alimentares locais.
Produtos industrializados em mercado em uma das comunidades participantes da pesquisa. Crédito: Daiane da Rosa
“Desenvolvemos
essa pesquisa em comunidades com diferentes acessos aos centros urbanos e aos
supermercados. Estamos investigando como isso pode estar influenciando o
consumo de alimentos industrializados, em especial os ultraprocessados”,
explica a pesquisadora.
Essa etapa da
pesquisa, desenvolvida entre os anos de 2023 e 2024, envolveu questionários
aplicados a diferentes perfis dentro das comunidades — líderes comunitários,
merendeiras e gestores das escolas, anciãos, cozinheiras (os) e unidades
familiares — com destaque para as entrevistas com foco em questões
socioeconômicas e na chamada “biografia alimentar”, realizada em cerca de 25%
das casas de cada comunidade.
“Este bloco de entrevistas que engloba questões socioeconômicas e de hábitos alimentares durou cerca de 2 horas e nos deu uma grande riqueza de informações. A partir delas, conseguiremos entender as decisões alimentares em nível familiar”, afirma.
Pesquisa envolveu a participação de seis comunidades ribeirinhas nas Reservas Mamirauá e Amanã, Amazonas. Crédito: Joney Brasil
O desenvolvimento dos questionários e das perguntas que fizeram parte da pesquisa de campo teve como base uma ampla revisão da literatura especializada, realizada pela pesquisadora e co-autores, buscando entender, em nível global, quais são os fatores responsáveis por mudanças na alimentação em povos indígenas e comunidades locais.
“A revisão de literatura em escala global nos proporcionou entender as transições alimentares em populações tradicionais em nível macro, possibilitando o desenvolvimento de perguntas robustas e que fizessem sentido localmente”, afirma Daiane.
Dados censitários das Reservas Mamirauá e Amanã levantados entre 2018 e 2019, pelo Sistema de Monitoramento Demográfico e Econômico (SIMDE) desenvolvido pelo Instituto Mamirauá, também foram utilizados, com o objetivo de selecionar comunidades com o maior número possível de variáveis associadas aos objetivos da pesquisa.
Tradições resistem, mas enfrentam desafios
Açaí com farinha continua sendo uma das combinações mais tradicionais e presentes no cardápio ribeirinho. Crédito: Daiane da Rosa
Entre os
resultados preliminares, um dado chama atenção: a base da alimentação
ribeirinha nessa região da Amazônia permanece centrada no pescado e na farinha
de mandioca, complementada com alimentos in natura e minimamente
processados, adquiridos no supermercado No entanto, há indícios de mudanças
significativas entre gerações.
Segundo os
anciãos e os chefes familiares, os jovens e adolescentes das comunidades
consomem mais alimentos ultraprocessados do que os adultos — um reflexo,
segundo a pesquisa, da influência crescente da merenda escolar.
“As pessoas que
tomam as decisões alimentares, ou seja, o que será comprado no supermercado e
também servido nas refeições familiares, têm hoje, em média 40 anos de idade,
e seus hábitos estão ligados à cultura alimentar regional, mais tradicional. Entretanto
os chefes familiares relataram que os hábitos alimentares de crianças e
adolescentes estão cada vez mais voltados para as comidas de supermercado”,
observa Daiane.
Em comunidades
mais distantes de centros urbanos, especialmente aquelas situadas em áreas de paleovárzea
(menos afetadas pelas dinâmicas de secas e cheias dos rios da região),
observou-se uma maior diversidade alimentar.
“A agricultura
familiar e de subsistência tem um papel essencial. Para além da roça, os
alimentos que são produzidos nos quintais e nos sítios aumentam consideravelmente
a diversidade alimentar. Comunidades em áreas de várzea acabam ficando mais
vulneráveis na cheia, e aí recorrem ao supermercado com mais frequência”,
destaca.
Merenda escolar é um dos vetores da mudança
Produtos ultraprocessados em despensa de escola em uma das comunidades participantes da pesquisa. Crédito: Daiane da Rosa
O estudo também analisou o papel da alimentação nas escolas e identificou uma alta incidência de ultraprocessados na lista de itens da merenda escolar. Segundo Daiane, essa é uma descoberta significativa no contexto das mudanças alimentares, pois indica que a escola introduz hábitos diferentes daqueles tradicionalmente praticados nas famílias, influenciando o processo de transição alimentar.
“Esses hábitos se
estabelecem. As crianças aprendem a comer de determinada forma na escola e
levam isso para casa, influenciando, inclusive, a alimentação do restante da família.
É um ciclo de transformação que está em processo”, observa a pesquisadora.
Os chamados alimentos
ultraprocessados são formulações industriais feitas majoritariamente de
substâncias extraídas ou derivadas de alimentos, como óleos, gorduras, açúcares
e aditivos químicos, com pouco ou nenhum alimento in natura em sua
composição. Produtos conhecidos das prateleiras de supermercados como
refrigerantes, biscoitos recheados, embutidos, carnes enlatadas, salgadinhos e
refeições prontas, associados a diversos problemas de saúde, como obesidade,
diabetes e doenças cardiovasculares.
De acordo com o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (NUPENS/USP), referência internacional no tema, o consumo crescente desses produtos está diretamente ligado à perda de práticas alimentares tradicionais e ao aumento de doenças crônicas não transmissíveis.
Olhar o passado para entender o presente
Pesquisa ouviu os moradores mais antigos das comunidades e aponta informações sobre o consumo de alimentos industrializados que remontam ao início do século XX. Crédito: Daiane da Rosa
Outro eixo da
pesquisa envolveu conversas com os anciãos das comunidades, que ofereceram um
panorama histórico da alimentação local. Esses relatos revelaram que os
primeiros contatos com alimentos industrializados remontam ao início do século
XX, por meio dos regatões — grandes embarcações que circulavam nos rios da
região vendendo e trocando alimentos industrializados tais como café, açúcar,
bolachas e manteiga, por alimentos e produções locais.
Segundo a
pesquisadora, esta pode ter sido uma época em que a primeira onda de mudanças
alimentares ocorreu na região, partindo de uma dieta majoritariamente in
natura e processada localmente (como a farinha de mandioca, bolos de massa e
tapioca), para uma alimentação incluindo itens alimentares minimamente
processados. A partir desse momento na história recente da região, itens como o
café, o açúcar e o arroz começaram a se fazer presentes e se tornar parte da
mesa de famílias ribeirinhas.
Essa memória viva tem sido essencial para entender como as populações ribeirinhas vêm adaptando suas práticas alimentares diante de mudanças econômicas, ambientais, sociais e culturais.
Oficinas de alimentação nas comunidades: do conhecimento à ação
Participantes da oficina de devolutiva da pesquisa na comunidade São Francisco do Aiucá (AM). Crédito: João Cunha
Como parte do
compromisso ético com as comunidades envolvidas, a equipe da pesquisa promoveu,
no primeiro semestre de 2025, oficinas de devolutiva em cinco das comunidades
participantes: Ubim, São João do Ipecaçu, Jubará, Ponto X e São Francisco do Aiucá.
Nelas, os resultados preliminares da pesquisa foram apresentados de forma
acessível, acompanhados de atividades de educação e sensibilização alimentar.
“Percebemos, a partir das interações com as comunidades, que existe uma carência muito grande de informação sobre alimentação e saúde. Por isso, a devolutiva se tornou também uma oportunidade de informar essas pessoas para que possam fazer melhores escolhas alimentares no dia a dia”, diz Daiane.
A pesquisadora Daiane da Rosa (foto) durante uma das oficinas de alimentação com as comunidades. Crédito: João Cunha
Durante as
oficinas, os moradores aprenderam a interpretar rótulos de alimentos,
identificar ingredientes nocivos à saúde e entender os impactos para a saúde do
consumo de ultraprocessados. A iniciativa foi bem recebida pelos participantes,
que destacaram a importância de levar esse conhecimento para as escolas e para
o cotidiano familiar.
“Hoje em dia, percebemos que muita gente vem se alimentando de forma desregrada. Foi muito importante que o projeto trouxe informações práticas, para a gente aplicar na escola e em casa também”, afirmou o professor Elionaldo Costa, da comunidade São Francisco do Aiucá.
Nas oficinas, os comunitários aprenderam a identificar as informações nutricionais em embalagens de produtos ultraprocessados. Crédito: Daiane da Rosa
Alessandro
Brandão, professor de História na mesma comunidade, refletiu sobre como conteúdo
das oficinas pode ser utilizado em sala de aula. “Na escola, eu vou fazer esse
papel de abordar questões alimentares, que foram utilizadas pelos nossos
antepassados, e hoje estão se perdendo. Essas informações nos ajudam a elaborar
conteúdos educativos para o resgate da nossa cultura, que é indígena, inclusive
na alimentação”.
Alaíde Bezerra é uma das moradoras mais antigas da comunidade Jubará, na Reserva Mamirauá. Com mais de 6 décadas de vivência e conhecimento do território, durante a oficina, ela compartilhou a memória de tempos antigos da alimentação local, com uma dieta mais farta e composta de alimentos colhidos da terra. “Na minha vida, eu bebi muito tacacá, mingau de banana, mingau de massa com castanha, mingau de farinha com leite de sova. Eu comi muito michuá naquele tempo, frito, com café".
Comunitários apresentam suas memórias com base na dinâmica sobre comidas do passado, presente e futuro, realizada durante as oficinas de devolutiva. Crédito: João Cunha
Já a estudante
Rayara Souza, de 15 anos, relatou que ficou impressionada com as informações
aprendidas na oficina. “Eu fiquei muito chocada com algumas coisas, como pode
um só alimento conter tantas substâncias, algumas que até podem fazer mal pra
gente? Foi legal entender como a alimentação está mudando, e isso me deu até
ideias para o futuro, do que eu quero fazer daqui pra frente”, contou.
O jovem Yuri Pereira, de 21 anos, morador da comunidade Ubim, também destacou o quanto a oficina foi transformadora: “A gente achava que as coisas industriais, que eram gostosas, não faziam tanto mal como as coisas naturais que a gente tem aqui na nossa comunidade mesmo”, conta. “Uma das coisas também que eu aprendi, que acho que vou levar para o resto da minha vida, é sobre o ‘T’ das embalagens, de transgênico, que é uma mistura. Como na lata de milho, que é diferente de um milho natural, plantado na comunidade”.
Um olhar sobre o futuro
Ao fim da
pesquisa, a equipe espera desenvolver um índice de diversidade biocultural
alimentar — uma ferramenta que poderá indicar o grau de resiliência das
comunidades diante das mudanças alimentares. A intenção é que esse índice sirva
tanto para análises acadêmicas quanto para a formulação de políticas públicas
voltadas à segurança alimentar e à saúde das populações tradicionais.
Com uma abordagem
que une ciência, tradição e participação comunitária, o estudo pretende
contribuir para um debate global sobre os impactos das transições alimentares —
e o que elas significam para a cultura, a saúde e a sustentabilidade das
comunidades tradicionais, na Amazônia e além dela.
O estudo é uma parceria entre a Universidade de Lisboa, através do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (cE3c) da Faculdade de Ciências e do Instituto de Ciências Sociais, o Grupo de Pesquisa RESILIDADES da Universidade Federal do Amazonas e o Grupo de Pesquisa em Territorialidades e Governança Socioambiental na Amazônia do Instituto Mamirauá.
Sobre o Instituto Mamirauá
O Instituto
Mamirauá é uma unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e
Inovação (MCTI), voltada à conservação da biodiversidade e à melhoria da
qualidade de vida das populações amazônicas, com atuação direta em pesquisa,
desenvolvimento sustentável e apoio a políticas públicas na região.
Texto: João Cunha
Assessoria de Comunicação do Instituto Mamirauá
Contatos: +55 (97) 98119-8352 | ascom@mamiraua.org.br - Tefé (AM)
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