No “Mundo Perdido”: pesquisas revelam a origem e a diversidade de borboletas nos tepuis

Publicado em: 23 de setembro de 2025

Imagine montanhas que parecem ter sido recortadas do céu, com topos planos, florestas envoltas em névoa e paisagens que inspiraram a criação do romance O Mundo Perdido, de Arthur Conan Doyle. Esses são os tepuis, formações rochosas monumentais que se erguem no Escudo das Guianas, na fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana – o tepui mais famoso para os brasileiros é o Monte Roraima. Isolados como ilhas no céu, os tepuis abrigam espécies únicas de plantas e animais, muitas delas não são encontradas em outros lugares do planeta.

dae300e05adb0a974e9a551e2e3110d2

Foto 1: Imagem aérea da face norte da Serra do Sol (Uei Tepui) no estado de Roraima, Brasil. Créditos: Thiago Laranjeiras

Nos últimos anos, pesquisadores brasileiros têm desvendado um pouco desse enigma natural. Dois estudos recentes — conduzidos por cientistas do Instituto Mamirauá, do ICMBio e instituições parceiras — revelaram como as borboletas respondem às variações de altitude nos tepuis e como sua diversidade foi moldada por mudanças climáticas ao longo de milhares de anos. As descobertas reforçam o valor biológico dessa região e alertam para os riscos que essas espécies enfrentam em um cenário de aquecimento global.

A origem de uma fauna singular

O Pantepui, como é chamada a província biogeográfica formada pelo conjunto dos tepuis, guarda uma biodiversidade marcada pelo alto endemismo — espécies que só existem ali. Entre elas está a borboleta Antirrhea ulei, descrita pela primeira vez em 1912 e redescoberta em expedições recentes. Segundo o pesquisador Rafael Rabelo, do Instituto Mamirauá, a história dessa espécie ajuda a entender a origem da fauna local.

b996166fdf0a56f37f3fa73ff76db99f

Foto 2: Face dorsal (A) e ventral (B) de um indivíduo macho de Antirrhea ulei, espécie endêmica dos tepuis, coletado na Serra do Sol.

“As flutuações climáticas do passado, especialmente durante a última glaciação, fizeram com que espécies adaptadas ao frio migrassem para áreas mais baixas. Com o aquecimento, elas voltaram a subir as montanhas. Esse vai e vem pode ter moldado a distribuição atual de espécies endêmicas nos tepuis”, explica Rabelo.

Modelos desenvolvidos pelos pesquisadores mostram que, durante o último máximo glacial (há cerca de 21 mil anos), A. ulei provavelmente ocupava áreas mais amplas e conectadas. Hoje, sua distribuição se restringe a poucos pontos elevados, o que a torna mais vulnerável às mudanças ambientais.

Borboletas no gradiente da montanha

Outro estudo, liderado por Isabela Oliveira, do ICMBio em parceria com o Instituto Mamirauá, trouxe novas respostas ao analisar a diversidade de espécies de borboletas ao longo do gradiente altitudinal do Uei Tepui, nome indígena para Serra do Sol, na fronteira Brasil-Venezuela dentro dos limites da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e do Parque Nacional Monte Roraima. Em apenas 21 dias de expedição, foram registradas 93 espécies de borboletas, das quais várias são exclusivas dos tepuis.

Os resultados mostraram que a riqueza e a abundância diminuem consideravelmente à medida que a altitude aumenta. Porém, acima de 1330 metros ocorre uma mudança drástica: as espécies comuns da Amazônia dão lugar a borboletas endêmicas, adaptadas às condições únicas das florestas nebulares e topos rochosos.

“É como se a montanha tivesse uma linha invisível. A partir dela, vemos menos espécies, mas mais especializadas e exclusivas desse ambiente. É um filtro natural, que seleciona organismos capazes de viver em condições mais frias e restritas”, comenta Oliveira.

89ba462e8b36b33d58ab7dfed0c61bc1

Foto 3: Prancha com exemplares de espécies de borboletas endêmicas registradas no Uei Tepui durante a expedição à Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Créditos: Isabela Freitas.

Entre as espécies registradas estão novas ocorrências para o Brasil e até possíveis novas espécies para a ciência. O estudo também revelou que a borboleta Antirrhea ulei é dominante nas maiores altitudes, confirmando seu status de símbolo da singularidade biológica dos tepuis.

Por que tanta exclusividade?

Mas o que explica essa concentração de espécies únicas nos tepuis? A resposta está no isolamento geográfico e ecológico dessas montanhas. Como verdadeiras ilhas cercadas por florestas e savanas, os tepuis criam barreiras naturais que limitam o deslocamento de organismos, mesmo que sejam organismos voadores como borboletas e aves. Além disso, seus ambientes apresentam fortes contrastes em pequenas distâncias — da floresta densa à vegetação arbustiva sobre rochas — o que favorece a diferenciação de espécies.

Esse processo faz com que muitas linhagens evoluam de forma independente, resultando em endemismo elevado. Segundo Rabelo: “Cada tepui tem características próprias, e isso significa que duas montanhas separadas por poucos quilômetros podem abrigar comunidades de borboletas muito distintas. É um verdadeiro laboratório natural de evolução.”


54ab6448687550e848fb8d7315cca87e3b9577f01274affa08a3aba5bb486254

Foto 4: Vegetação típica das florestas nebulares que ocorrem nos tepuis. Créditos: Isabela Oliveira.

O desafio das mudanças climáticas

Se o passado geológico e climático moldou a riqueza dos tepuis, o futuro traz preocupações. Com o aumento das temperaturas globais, espécies que já vivem próximas ao topo das montanhas podem não ter para onde escapar. Para muitas delas, não existe “um degrau acima”.

“Essas borboletas dependem de condições específicas de clima e vegetação. Se essas condições desaparecerem, o risco de extinção é real”, alerta Oliveira.

Além do aquecimento, a maior frequência de extremos climáticos, como secas e tempestades intensas, pode afetar diretamente a sobrevivência das espécies e a regeneração de suas plantas hospedeiras. Para os cientistas, é urgente ampliar o monitoramento da biodiversidade dos tepuis e integrar essas áreas às estratégias de conservação.

Uma janela para o desconhecido

Os estudos também destacam a importância das parcerias locais. A pesquisa no Uei Tepui só foi possível com o apoio do povo indígena Ingarikó, que vive na região, além da colaboração de gestores de unidades de conservação como o Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

“Conhecer essa biodiversidade não é apenas uma questão científica. É também valorizar a cultura e o território dos povos que sempre viveram em harmonia com esse ambiente”, reforça Rabelo.

Para Oliveira, a mensagem é clara: “Os tepuis ainda guardam muitos segredos. Estamos apenas arranhando a superfície do que existe ali. Cada expedição traz descobertas que reforçam o quanto precisamos proteger esse ‘Mundo Perdido’.”

ee9076621d999474276da08b1e415b37ae04807df0b0aa932b053821273081cc

Foto 5: Equipe da expedição em campo com pesquisadores e representants indígenas Ingarikó que contribuíram no trabalho de campo. 

A ciência mostra que os tepuis são mais do que paisagens espetaculares: são refúgios de biodiversidade moldados por milhares de anos de história natural. As borboletas, com sua beleza e sensibilidade às mudanças ambientais, revelam como esses ecossistemas são frágeis e únicos. Proteger os tepuis significa proteger não apenas espécies isoladas, mas todo um patrimônio biológico e cultural que pertence à Amazônia e ao planeta.

ec68473f7944b443d7bdfd05b7cf2be3


Texto: Rafael Rabelo e Isabela Oliveira

Últimas Notícias

Comentários

Receba as novidade em seu e-mail: